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Hipnose. 

Desde o surgimento da Psicanálise que nenhuma outra técnica causou tanta polémica e controvérsia. E, realisticamente, ainda causa.

Passado da Hipnose 

Hipnose, tal como ela é conhecida, surge com James Braid, médico que examinou sujeitos expostos ao Mesmerismo, prática considerada percursora da Hipnose, inventada pelo médico Franz Anton Mesmer. Originalmente, Braid deu a esta nova forma o nome de neurohypnotism mas, por alguma razão, a parte neuro caiu, deixando para a posterioridade Hipnostismo ou Hipnose. Infelizmente, o nome Hipnose deu origem a um dos mitos que a rodeiam pois tem a sua génese na palavra Hypnos, o deus grego do sono.

Nem mesmo os esforços de James Braid e do seu colega James Esdaile, com os seus artigos científicos e as cirurgias que Esdaile realizou, sem anestesia química apenas Hipnose, conseguiram mudar a opinião da comunidade médica e científica, sobre a utilidade e eficácia da Hipnose. Entretanto, instala-se a guerra teórica sobre o domínio da Hipnose. Por um lado, temos a Escola de Nancy, encabeçada por Ambroise Liébeault e Hippolyte Bernheim, atribuindo Hipnose a um conjunto de expectativas, variáveis sociais, sugestão e desejabilidade social do cliente, face ao terapeuta. Por outro lado, temos a Escola de Nancy, encabeçada por Jean Martin Charcot, acreditando que Hipnose estaria associada à histeria e que, portanto, apenas sujeitos histéricos apresentariam capacidade para entrar em Hipnose. Com uma revolução no campo, muito foi depositado em Freud.

Sigmund Freud foi um médico neurologista, que começou a demonstrar interesse no funcionamento psicológico, por detrás da doença física. Freud estipulava que, face a bloqueios cuja origem orgânica havia sido despistada, existiria uma explicação insconsciente para a dor e conflito. Após conseguir uma oportunidade de estágio no Hospital de la Salpêtrière, Freud ficou fascinado com as práticas e demonstrações de Charcot, sobre Hipnose. O seu interesse levou mesmo a que traduzi-se obras de Charcot e de Pierre Janet, para outras linguas. O grande avanço foi quando, a convite de Josef Breuer, Freud constituiu a base do que seria a Psicanálise, reavivando o interesse da Hipnose. Contudo, assim como elevou o interesse na Hipnose, também o enterrou, afirmando que Hipnose não era uma técnica adequada para aceder aos conteúdos do inconsciente, criando para o efeito a Associação Livre de Ideias e a Interpretação dos Sonhos.

Hipnose entrou na escuridão, não só pelas criticas de Freud mas, também, pelo crescente desenvolvimento da Psiquiatria e Farmacologia, nomeadamente com a criação de clorofórmio. Ironicamente, foram os artistas de palco que mantiveram a técnica viva, até o seu breve reaparecimento na altura da 2ª Guerra Mundial, devido ao escasso acesso ao clorofórmio.

A Psicologia Experimental trouxe inúmeras inovações à forma como o funcionamento psicológico começou a ser explicado. Áreas como o Comportamentalismo e o Cognitivismo começaram a emergir como novas áreas de intervenção e investigação. Hipnose não foi exceção. Nos anos 50, André Weitzenhoffer e Ernest Hilgard desenvolveram aquilo que seria conhecido como o “gold standard” da investigação em Hipnose, as Escalas de Sugestionabilidade Hipnótica de Stanford. Estas escalas exploravam o conceito de sugestionabilidade hipnótica, algo que foi semeado pelas teorias de não estado. Este conceito designa o nível da resposta do sujeito, a sugestões, quando no estado hipnótico. A partir deste conceito, a literatura refere três grandes categorias: nada sugestionáveis, moderadamente sugestionáveis e altamente sugestionáveis ou virtuosos, como Hilgard os descreveria. Ainda sobre este assunto, a literatura refere também o Estado Esdaile, ou estado sonambúlico, apenas possível de ser atingido pelos virtuosos. As escalas seriam organizadas numa indução, sugestões de resposta ideomotora, cognitiva e perceptual, por grau de dificuldade. Através do preenchimento de questionários de auto relato, o sucesso na resposta das sugestões aumentaria o score do sujeito e, por inerência, o seu nível de sugestionabilidade hipnótica. É de realçar que este nível manter-se-ia ao longo da vida do sujeito e que, notáveis investigados como Nicholas Spanos, afirmavam e desenvolveram programas de treino, com o objectivo de aumentar a sugestionabilidade do sujeito. Apesar de controverso entre praticantes e clínicos, estes métodos de investigação ainda são aplicados na atualidade e, curiosamente, artistas de palco continuaram a empregar testes de sugestionalidade, com o objectivo de selecionar os melhores candidatos de resposta a sugestões, para o seu espetáculo.

Enquanto que o conceito de sugestionabilidade hipnótica deu muita força a investigadores, muitos praticantes defendiam o transe, um conceito oposto aquele apresentado em investigação. Transe, de uma forma geral, é o veiculo de transporte que permite ao sujeito entrar em Hipnose. Ou seja, quem não experienciasse o transe, não estava hipnotizado. Ao contrário da sugestionabilidade hipnótica, a existência do transe não foi comprovada em investigação e, até à data, tal ainda não foi possível. Provavelmente nunca será. Transe depende fortemente da ocorrência do fenómeno de dissociação e, como tal, modelos e técnicas foram desenvolvidas. Como exemplo, uma das mais famosas será a Teoria Neodissociativa de Ernest Hilgard, onde é estipulado a figura do “observador escondido”, uma parte dissociada do Self que permite ao sujeito responder às mais simples e complexas sugestões. A grande força deste conceito pode ser encontrada na investigação da dor, como o trabalho intitulado de Hypnosis in the Relief of Pain.

O inicio do século XX trouxe grandes, mas também controversas, mudanças no campo da Hipnose. Mas vamos por partes.

O psiquiatra americano Milton H. Erickson foi o responsável pelo novo interesse de profissionais de saúde, pelo campo da Hipnose, apresentando uma abordagem diferente da existência, algo que seria conhecido como Hipnose Ericksoniana.

Num misto de autodidata com palestras do psicólogo comportamentalista Clark Hull, Erickson adaptou o modelo tradicional de Hipnose para algo que seria mais eficaz para o seu próprio estilo terapêutico e para cada um dos seus clientes. Esta seria uma abordagem mais permissiva, indireta e estratégica, onde Hipnose era utilizada com o objectivo da finalidade da terapia, de uma forma não intrusiva e quase conversacional. O papel do hipnotizador rígido, diretivo e autoritário era completamente substituído por um terapeuta estratégico, atento ao outro e capaz de adaptar à medida uma intervenção especifica a cada cliente especifico. Erickson reforçava o papel do every day trance, afirmando que cada sujeito passava, de forma natural, por vários fenómenos hipnóticos ao longo da sua vida. Assim sendo, o terapeuta apenas teria de utilizar esses estados naturais de transe para, estrategicamente, operar a mudança do sujeito. Erickson era um feroz crente na potencialidade humana e que todas as pessoas têm, dentro de si, todos os recursos necessários para ultrapassar quaisquer barreiras e que esses recursos estão alojados numa parte inconsciente, de cada um. Este inconsciente seria totalmente diferente daquele esquematizado por Freud. Com uma personalidade excêntrica e um estilo irreverente (Erickson nunca conceptualizou a sua abordagem, deixando que cada um dos seus seguidores interpretasse as suas técnicas), Erickson ganhou vários inimigos e muitos mais seguidores. Não obstante, a marca de Erickson na Hipnose é inegável e, até este momento, o seu legado é guardado e difundido pela Fundação Milton H. Erickson, sob a alçada de Jeffrey Zeig, um dos seus alunos. Para além da Fundação, no Arizona, existem vários institutos espalhados pelo mundo, cujo objectivo é divulgar e treinar técnicos nos métodos de Erickson.

Por contraste a Erickson, a influência de Hipnose dita mais tradicional floresce pelas mãos de Dave Elman.

Ao contrário de Erickson, Elman foi um autêntico autodidata. A sua primeiro interação com Hipnose aconteceu quando era criança, vendo o potencial dos efeitos da técnica, quando esta era utilizada para gerir o desconforto dos tratamentos oncológicos do seu pai. Mais tarde, Elman tornou-se locutor de um programa de rádio, onde convidava pessoas de várias áreas, com o objectivo de divulgar e demonstrar os seus conhecimentos. Numa dessas edições, Elman convidou um hipnotista mas, no decurso da conversa, ficou óbvio que Elman tinha muito mais habilidade e conhecimentos do que o seu convidado. Este momento fez com que Elman decidir dedicar-se exclusivamente ao ensino de Hipnose, na comunidade médica. Isto porque, Elman considerava que a técnica e linguagem hipnótica seria adequada e mais eficaz, para intervenções de 15 ou 20 minutos. Contrariamente aos métodos ericksonianos, os métodos de Elman eram mais autoritários, diretos, breves e desenhados para levar a pessoa a atingir níveis de grande profundidade hipnótica. Ainda hoje, a Indução de Elman é das induções mais utilizadas, ao longo do mundo. É de notar que, devido à enorme diferente entre métodos e personalidades, existia uma guerra aberta entre Erickson e Elman onde, o principal motivo era o de Elman, não sendo um técnico de saúde, treinar médicos na prática de Hipnose.

Neste século, Hipnose não foge às áreas da espiritualidade, espiritismo e esoterismo. A noção de reencarnação, outras vidas e fenómenos para psíquicos sempre foi um tópico de interesse para o ser humano. Psiquiatras e psicólogos, como Raymond Moody, começaram a investigaram, de forma quantitativa e qualitativa, o que denominaram como Experiências de Quase-Morte, fenómeno que ocorre em pessoas que experienciam o coma, chegam a ser declaradas mortas e, por algum motivo, regressam à vida. Entre esses momentos, as pessoas relatam passar por experiências de dissociação corporal total, levitar para fora do corpo, verem luzes, ouvirem as vozes daqueles que identificam como entes queridos, que já faleceram. No seguimento deste contexto, surge o contacto com Hipnose.

Morris Netherton é um psicólogo norte-americano conhecido por ter desenvolvido o sistema de Terapia de Regressão a Vidas Passadas. A ideia de terapia de regressão não é nova, a própria Psicanálise acredita que, através da catarse e reviver o sofrimento de experiências traumáticas, o paciente pode libertar-se da dor emocional e psicológica. Netherton foi para além deste conceito, com a aplicação de Hipnose, sugerindo que a pessoa regredisse até ao ponto no tempo, numa outra vida, que possa explicar e oferecer significado ao trauma da vida atual.

Simultaneamente, a TVP teria um novo impulso de popularidade através de Brian Weiss. Este psiquiatra americano é um dos mais reconhecidos advogados da utilização de TVP, mas nem sempre foi assim. Admitindo ser céptico, a história da entrada de Weiss no mundo da TVP pode ser lida no seu primeiro livro, Muitas Vidas, Muitos Mestres. Nele, Weiss relata o caso de uma das suas pacientes, Catherine, alguém diagnosticada com depressão e agorafobia. A não resposta a técnicas fez com que Weiss recorresse à utilização de Hipnose, nomeadamente regressão. Segundo o relato, Catherine teria regredido a um ponto, fora da sua vida, entrado em contacto com entidades que revelaram pormenores pessoais sobre a vida e família de Brian Weiss. Desde essa altura, Weiss é um dos principais nomes e defensores da TVP, realizando palestras e workshops sobre o tema.

Até à data, não existe nenhuma investigação científica credível que valide este método. Pelo contrário, estudos apontam que os fenómenos de TVP podem ser provocados por falsas memórias e sugestões enviesadas.

Por último, resta apenas referenciar a PNL, Programação Neuro-Linguística. 

Este sistema foi criado por Richard Bandler, Frank Pucelik e John Grinder, para ser uma alternativa mais eficaz que os métodos psicoterapêuticos mais convencionais. Através da modelagem dos métodos de um dos criadores da Terapia Gestalt, Fritz Perls, Bandler e Pucelik criaram grupos de trabalho, em contexto universitário, onde aplicavam essas metodologias. Mais tarde, Bandler repetiu o mesmo processo com as técnicas da terapeuta sistémica, Virginia Satir. Com o estabelecimento da relação com o linguista John Grinder, Bandler acabou por focar-se mais nessa dualidade, afastando Pucelik do desenvolvimento do trabalho em curso. Intitulado como A Estrutura da Magia, este livro espelha os fundamentos da chamada Programação Neuro-Linguística e lançou Bandler e Grinder para a popularidade. Por concelho de Gregory Bateson, Bandler estudou e modelou o trabalho de Milton Erickson, especialmente a linguagem hipnótica que Erickson empregava. Desta forma, Hipnose entra no modelo da PNL, fazendo com que este método sai-se do contexto terapêutico e atingisse o contexto empresarial, marketing, vendas, coaching, etc. Com o pico da popularidade e rentabilidade da PNL, Bandler entraria em conflito com Grinder pelos direitos criativos de PNL e o seu nome, conflito este que levaria o caso a tribunal, durante anos. Como consequência, ambos entraram em ruptura, criando uma duas abordagens, Design Human Engineering de Bandler e New Code NLP de Grinder.

Imagem do presente, a caminho do futuro

A importância de saber qual foi o caminho da Hipnose permite-nos observar o que está a acontecer, neste momento e criar uma hipótese para o futuro.

Cada vez mais surgem ofertas de cursos de Hipnose, focados em partes espirituais e esotéricas, sem uma linha orientadora claramente definida e que apostam na promoção da ideia de que qualquer pessoa pode ser “hipnoterapeuta”. Em Portugal, não existe nenhuma legislação sobre a utilização profissional de Hipnose o que significa que, se uma pessoa quiser aplicar Hipnose profissionalmente, poderá fazer sobre a linha de terapeuta holístico ou alternativo. Gera-se o clima que não é necessário ser profissional de saúde para utilizar Hipnose no tratamento físico e psicológico de pessoas, que Hipnose é uma terapia e que todo o corpo de investigação científico é colocado de lado, face a movimentos de parapsicologia, misticismo ou esoterismo.

Os próprios profissionais que formam são, na sua maioria, formados em PNL, o que faz com que os cursos percam qualidade e que não tenham formação e competência suficiente para ensinar na intervenção de situações clinicas e mentais.

O fenómeno da Hipnose de Palco é uma realidade fortíssima nos Estados Unidos e Brasil, apenas como referência, chegando mesmo ao plano do entretenimento televisivo. Em muitos casos, são mentalistas a realizarem esses espetáculos e não profissionais. Até porque a ética profissional impede tais atos. Para que seja claro, mentalistas são pessoas que utilizam ilusões psicológicas, de modo a criar efeitos de entretenimento desejado. Por outro lado, em muitos dos casos, são mentalistas que dão formação em cursos de Hipnose.

A Terapia de Regressão a Vidas Passadas está a ser, cada vez, impulsionada como alternativa válida pela comunicação social, nomeadamente a televisão. Isso faz com que as pessoas procurem este método especifico, desconhecendo de como funciona, porque funciona e se é ou não eficaz. O futuro promete que os cursos onde TVP seja incluída tenham muito mais interesse, só pelo facto de constar nos programas.

O caminho pela qual nos dirigimos faz crer que, cada vez mais, tenhamos a oferta de serviços de “Hipnoterapia” por parte de pessoas sem preparação em saúde mental e mesmo mal preparadas, em termos de Hipnose.

PNL, cuja eficácia científica é abaixo do publicitado, continuará em voga, fazendo com que pessoas de base profissional diferente de saúde mental decidam envergar pelos serviços de oferta terapêutica. Com isto, podemos observar um declínio na legitimidade da Hipnose, enquanto uma técnica válida e no tratamento da saúde mental da sociedade.

De quem é a responsabilidade? Infelizmente, dos profissionais de saúde.

Durante muito tempo, médicos, psiquiatras e psicólogos abandonaram a Hipnose e permitiram que ela fosse agarrada por aqueles que têm objectivos lucrativos. O exemplo em Portugal é que não existe nenhuma associação de Hipnose credível o suficiente para defender e lutar pela legitimidade da técnica, perante a sociedade e as ordens profissionais do campo da saúde mental. Assim, tanto a Ordem dos Médicos, como a Ordem dos Enfermeiros e Ordem dos Psicólogos invocam Hipnose inserir-se no seu campo, mas não há uma regulação profissional, por parte de nenhuma.

É a minha crença que terão de ser os profissionais de saúde que acreditem na técnica e na sua eficácia que lutem pela utilização legitima e apropriada da Hipnose, mesmo contra uma industria crescente que vê na Hipnose apenas mais um meio de atingir um grande lucro.

 

 

 

 


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